terça-feira, 23 de novembro de 2010

O argumento justo

 
O argumento justo
À noite, em casa de Simão, transparecia um véu de tristeza na maioria dos semblantes.
Tadeu e André, atacados horas antes, nas margens do lago, por alguns malfeitores, viram-
se constrangidos à reação apressada. Não surgira conseqüência grave, mas sentiam-se
ambos atormentados e irritadiços.
Quando Jesus começou a falar acerca da glória reservada aos bons, os dois discípulos
deixaram transparecer, através do pranto discreto, a amargura que lhes dominava a alma e, não
podendo conter-se, Tadeu clamou, aflito:
— Senhor, aspiro sinceramente a servir à Boa Nova; contudo, sou portador de um coração
indisciplinado e ingrato. Ouço, contrito, as explanações do Evangelho; lá fora, porém, no
trato com o mundo, não passo de um espírito renitente no mal. Lamento... lamento... mas como
trabalhar em favor da Humanidade nestas condições?
Embargando-se-lhe a voz, adiantou-se André, alegando, choroso:
— Mestre, que será de mim? Ao seu lado, sou a ovelha obediente; entretanto, ao distanciar-
me... basta uma palavra insignificante de incompreensão para desarmar-me. Reconheçome
incapaz de tolerar o insulto ou a pedrada. Será justo prosseguir, ensinando aos outros a
prática do bem, imperfeito e mau qual me vejo?!...
Calando-se André, interferiu Pedro, considerando:
— Por minha vez, observo que não passo de mísero espírito endividado e inferior. Sou o
pior de todos. Cada noite, ao me retirar para as orações habituais, espanto-me diante da coragem
louca dentro da qual venho abraçando os atuais compromissos. Minha fragilidade é grande,
meus débitos enormes. Como servir aos princípios sublimes do Novo Reino, se me encontro
assim insuficiente e incompleto?
À palavra de Pedro, juntou-se a de Tiago, filho de Alfeu, que asseverou, abatido:
— Na intimidade de minha própria consciência, reparo quão longe me encontro da Boa
Nova, verdadeiramente aplicada. Muita vez, depois de reconfortar-me ante as dissertações do
Mestre, recolho-me ao quarto solitário, para sondar o abismo de minhas faltas. Há momentos
em que pavorosas desilusões me tomam de improviso. Serei na realidade um discípulo sincero?
Não estarei enganando o próximo? Tortura-me a incerteza... Quem sabe se não passo de reles
mistificador?
Outras vozes se fizeram ouvir no cenáculo, desalentadas e cheias de amargura.
Jesus, porém, após assinalar as opiniões ali enunciadas, entre o desânimo e o desapontamento,
sorriu, tocado de bom-humor, e esclareceu:
— Em verdade, o paraíso que sonhamos ainda vem muito longe e não vejo aqui nenhum
companheiro alado. A meu parecer, os anjos, na indumentária celeste, ainda não encontram
domicílio no chão áspero e escuro em que pisamos. Somos aprendizes do bem, a caminho do
Pai, e não devemos menoscabar a bendita oportunidade de crescer para Ele, no mesmo impulso
da videira que se eleva para o céu, depois de nascer no obscuro seio da terra, alastrando-se
compassiva, para transformar-se em vinho reconfortante, destinado à alegria de todos. Mas, se
vocês se declaram fracos, devedores, endurecidos e maus e não são os primeiros a trabalhar
para se fazerem fortes, redimidos, dedicados e bons em favor da obra geral de salvação, não
me parece que os anjos devam descer da glória dos Cimos para substituir-nos no campo de
lições da Terra. O remédio, antes de tudo, se dirige ao doente, o ensino ao ignorante... De outro
modo, penso, a Boa Nova de Salvação se perderia por inadequada e inútil...
As lágrimas dos discípulos transformaram-se em intenso rubor, a irradiar-se da fisionomia
de todos, e uma oração sentida do Amigo Divino imprimiu ponto final ao assunto.
Do livro Jesus no Lar / Chico Xavier




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